Minha cidade e eu
Anelê Volpe, 2024
Quase 50 anos depois, aquele cheiro de garapão, resíduo da cana-de-açúcar destilada, permanece forte na minha memória, bem como a imagem do entardecer de cor laranja, manchado de fagulhas das queimadas nos canaviais que cercam minha cidade natal. Essas mesmas fagulhas que, de tempos em tempos, forravam os quintais e as ruas, anunciavam mais um ciclo de muito trabalho dos boias-frias.
Nada soava inaceitável até então; nem as queimadas, nem a precariedade do trabalho nos canaviais, que só desapareceriam muitos anos depois.
Crescer junto com a cidade faz com que cada canto seja um lugar seguro, e cada morador, um rosto amigo. A vida concentrada no centro da cidade, com algumas escapadas para a periferia que estava a poucas quadras dali, transcorria em câmera lenta. A cidade e eu seguíamos nossos destinos.
Éramos, na maioria, descendentes de italianos vindos na virada do século XIX para o século XX. Alguns descendentes de espanhóis e outros, de portugueses aumentavam um pouco a população. Aqueles que descendiam de japoneses eram tão poucos que, para identificá-los, bastava dizer que eram “os japoneses”. Havia a população flutuante dos boias-frias, verdadeiros motores do progresso da cidade.
As famílias eram sempre numerosas, os jovens se agrupavam em gerações e cada um era conhecido como irmão de fulano, primo de beltrano ou filho de sicrano.
Todas as relações amorosas se desenvolviam em torno das escolas, dos clubes, dos cinemas e da praça da igreja. E muita gasolina era usada, por aqueles poucos que tinham carro, para movimentar as ruas onde moravam aquelas que queriam namorar.
Grande parte dos jovens saiu para estudar em outras cidades, perseguindo sonhos de uma vida com mais emoção, mais progresso, mais dinheiro. Por motivos diversos, muitos voltaram; outros não.
Aos 17, deixei minha cidade. Entre muitas idas e vindas, senti de perto o quanto ela cresceu e se transformou.
A mesma cana que sujava a cidade enriqueceu muitos de seus moradores, alargou suas ruas, fez crescer seus horizontes, afastou pra longe o pôr do sol, elevou seus edifícios e, mais recentemente, cercou seus milionários em condomínios de casas luxuosas. Sua periferia a dominou e os moradores tornaram-se mais estranhos entre si. Os mais antigos agora conhecem muito mais gente, mas convivem com muito poucos. As ruas não são mais seguras, não há mais clubes nem cinemas, apenas a praça da matriz segue como sinônimo de centro da cidade.
Meus encontros com minha cidade natal são repletos de melancolia. Muitos lugares ainda me remetem ao passado, a cenas familiares, aos amigos, a acontecimentos marcantes da minha vida. A cidade ainda tem a mesma claridade sob o sol, o mesmo calor às vezes insuportável, o mesmo pôr do sol no seu cinturão de cana de açúcar.
Quem vive fora de sua cidade natal tem suas memórias emotivas fortemente ligadas a ela. Com esse olhar embaçado por uma romantização do passado, é natural que eu sinta que minha cidade perdeu sua antiga vocação de cidade pequena e acolhedora. Quatro vezes maior do que quando eu a deixei, ela hoje se parece com tantas outras, já sem muitas das marcas que a distinguiam. O que não mudou com o tempo é sua ligação com seus canaviais, suas verdadeiras raízes.
No final das contas, minha trajetória se confunde com a de minha cidade. Assim como ela, ampliei meus horizontes, perdi e adquiri amigos, fui transformada por outros conhecimentos e valores, porém, ainda compartilhando, com muitos conterrâneos, o cheiro de garapão impregnado na memória, e sentindo cada vez mais minhas raízes firmes nos canaviais da cidade.