O espelho
Anelê Volpe 2024
Ela encara o espelho sem medo. Nem sempre foi assim.
Quando começou a envelhecer, viu ali uma imagem sua de um futuro que nunca quis para si. Decidiu que naquele espelho não estava ela. Personificou o espelho com aquela imagem e assim começou sua luta contra ele.
As armas eram desiguais. Ela contava com dinheiro, tempo, ideias, sugestões, modelos e tudo o mais necessário para se recriar. Já ele, o espelho, só contava com o que via, ou melhor, com o que refletia.
Era sempre ele que tomava a iniciativa do ataque. A cada ataque, um contra-ataque imediato dela.
Ele engordou; ela emagreceu. Ele enrugou; ela esticou. Os cabelos dele embranqueceram; os dela foram pintados. Ele mostrou braços flácidos; ela puxou pesos. Os peitos dele caíram; os dela ganharam silicone. Eventualmente ela tomava a iniciativa, como quando aumentou os lábios e encapou os dentes.
Quando as provocações dele já tinham cessado, ela passou a provocá-lo com preenchimentos, lipoaspirações, clareamentos. Mas ele não acusava os golpes. Ao contrário, limitava-se a cutucá-la apenas com sua presença.
Certa vez ela lhe confessou que estava gostando dele mais do que antes, mas que precisava de suas batalhas para ser feliz. A intimidade era tão grande que, um certo dia, chegou a pensar que eles tinham se transformado numa mesma pessoa.
O tempo passou mais depressa para o espelho. Ela queria, no fundo, voltar a duelar, mas já havia, afinal, cultivado algum afeto por ele. Percebeu nele mais dignidade do que em si própria. Ele lhe disse que precisava contar suas histórias e tinha que ser por ela.
Então, num gesto altruísta, ela lhe prometeu que seria a voz e a imagem do espelho a partir daquele momento. As histórias ganharam credibilidade e o espelho, respeito.