O fim do mundo
Anelê Volpe, 2024
Enfim, o fim do mundo.
Já tinha sido anunciado infinitas vezes. Desde os tempos dos primeiros profetas. O dia em que o mundo ia se acabar parecia fadado a não chegar ainda que o número de crentes só aumentasse.
É certo que ultimamente coisas muito estranhas aconteciam. Tão estranhas que convencer os crentes de que eram previstas pelos profetas tornou-se uma tarefa ingrata.
Como prever que, a despeito de inúmeros tiranos e guerras, o mundo se tornaria uma única nação, sem fronteiras e sem governantes? Que cairiam todas as barreiras linguísticas; todos passariam a falar todas as línguas? Que novas misturas de raças, novos costumes e valores remodelariam o mundo? O que dizer da natureza em equilíbrio, do clima comportado, dos rios, vulcões e mares sob controle, e das espécies sem qualquer ameaça?
Não foi da noite para o dia que se chegou a esse ponto. Nem foi produto de qualquer fé religiosa. Foram mudanças tão imperceptíveis e lentas que nenhuma voz se levantava para analisá-las. Atribuíam ao poder da tecnologia sobre o homem e sobre a natureza.
Há muito tempo se convive com artefatos tecnológicos que agem como todo mundo. Não se sabe bem o efeito que eles têm sobre os humanos. Pode ser coincidência que, algum tempo depois de sua total imersão tecnológica, os homens se tornaram mais pacíficos.
Não se fala mais em guerra, nem bombas nucleares, nem terrorismo. Os noticiários desapareceram. Deixou de ser importante saber o que se passa no resto do mundo. Todos se sentem incluídos numa mesma parte dele. Não há o que falar sobre o clima. O calendário informa a estação do ano; suas características não variam. Assuntos políticos são tratados internamente nos grupos sociais. Eleições foram substituídas por convites protocolares a pessoas de algum destaque.
Os meios de comunicação transmitem filmes e programas de entretenimento. Quase todos produzidos apenas em laboratórios digitais. Desapareceram os heróis; não há contra o quê ou quem lutar. Os malfeitores atuais não têm nenhum apelo.
As religiões, outrora poderosas, mantêm seus dogmas, mas praticam a tolerância. Suas reuniões são eventos sociais. Não mais locais de pregação, preces e pedidos de perdão.
A Terra jamais foi tão agradável. Viagens espaciais não merecem tanta atenção. Não há motivos para se estar fora da Terra.
A notícia do fim do mundo ecoou simultaneamente mundo afora. Pegou todos de surpresa. Não há explicação de como estão seguros de que agora é para valer. Tampouco se explica como a surpresa tem dado lugar à credulidade absoluta. Ninguém questiona a veracidade do anúncio.
A calmaria terrestre só poderia mesmo ser um presságio para o fim do mundo. A história humana conhecida indicava o caminho oposto. Todos se calaram, como se compartilhassem a estratégia de não verbalizar o receio de que tudo voltasse a ser como era. Como se tentassem enganar alguma entidade superior.
Da mesma forma, ninguém verbaliza sobre a arma que porá fim ao mundo. Água, fogo, terremoto, maremoto, ninguém é capaz de prever. A dúvida é melhor do que a certeza. Resta a esperança de que nada aconteça. Algo maior pode vir em salvamento do mundo.
Alguns arriscam a previsão do horário exato do fim. Os diferentes fusos horários provocam reações variadas. Muitos se reúnem para um final em família ou mesmo comunitário. Outros enchem as estradas com seus carros, sem destino certo, na esperança de que a rotação da Terra adie um pouco seu fim. Mas parece que a Terra se move mais devagar; talvez não esteja se movendo. Num dos hemisférios, o sol não quer se por; no outro, a noite parece interminável. Os animais estão estranhos, mas tudo está estranho. Os rios correm normalmente. As marés dos oceanos obedecem à lua sem se rebelar.
Um silêncio sufoca a Terra. Enfim, o fim.