Volta à casa
Anelê Volpe, 2024
Volto àquela casa. O portão está aberto; brinquedos e bicicletas espalhados pelo caminho. A pequena escada leva à porta de madeira. Ainda do lado de fora ouço barulhos, vozes familiares misturadas e incompreensíveis.
Abro a porta e o cheiro da comida de minha mãe me invade e me enche de nostalgia. Mas não foi pela saudade que voltei. Os sons vêm da cozinha, mantenho-me parada no meio da sala. Quero apenas ouvir. Não estou preparada para ver.
Minha mãe pede que se lavem as mãos, pois o jantar será servido. Adivinho que vamos juntos, meu irmão e eu, ao banheiro, enquanto meu pai está se servindo de salada. Minha mãe, entre fogão e mesa, serve o de sempre: salada, arroz, feijão, ovos ou frango, salsicha ou linguiça. Uma jarra de água completa a cena.
Os ruídos agora indicam que todos estão em volta da mesa, concentrados. Sei que vou comer pouco e que meu irmão vai comer apenas arroz e a mistura. Meu pai comerá um pouco de tudo, e minha mãe vai demorar na salada, esperando para ver o quanto sobra para ela.
Decido então espiar. Não há perigo; ninguém pode me ver. Levo um choque. Nunca estamos preparados para enfrentar o passado. Mas eu preciso disso.
Observo muito meu pai e minha mãe. Não consigo ainda detectar olhares ou palavras que denunciem qualquer anormalidade. Conversam sobre banalidades. Quando passo a me observar, no entanto, me assusto ao me ver aos 8 ou 9 anos. Meu olhar, meus movimentos, todo meu corpo expressa angústia. Estou retraída, braços colados ao corpo, meu garfo escolhe demoradamente um ou outro pedaço de linguiça, que levo à boca sem levantar minha cabeça. De tempos em tempos, olho de soslaio para o meu pai, que não percebe e nunca olha para mim. As poucas vezes em que desvio meu olhar do prato é em direção à minha mãe, em pedido de socorro, mas ela também não repara em mim. Meu irmão apenas se preocupa em terminar com aquilo o mais rápido possível. Em poucos minutos a refeição se encerra. Minha mãe fica na cozinha, meu irmão e eu vamos para nosso quarto, e meu pai, para a sala ver TV. Passa tão próximo a mim que prendo a respiração para não sentir seu cheiro.
Fico mais um tempo observando minha mãe na cozinha. Não está feliz, nem triste, parece resignada apenas. Percebo uma ruga no seu semblante que não combina com sua pouca idade. Me dou conta de que não sinto nada por essa mulher. Talvez seja exatamente esse vazio no peito o que ela experimenta nesse momento. Antes de me dirigir ao quarto de dormir, observo meu pai no sofá, cochilando à frente da TV. Sei que em breve avisará a todos que é hora de dormir. Não há muito o que ver nele, pois conheço todos os seus segredos. Muito cedo deixei de amá-lo para temê-lo.
Abro a porta do quarto e vejo meu irmão sentado na cama, lendo suas revistas e ouvindo músicas pelos fones de ouvido. Estou fazendo tarefas da escola, também sentada na cama. Fosse outro observador, diria que estou entretida com as tarefas, às vezes pensando em minhas amiguinhas, em minhas bonecas, no que ocorreu na escola. Mas o que sinto é medo. Rezo em pensamento as poucas orações que aprendi, pedindo que o tempo pare, que o sol substitua a lua, que nunca chegue a hora de dormir.
O tempo passa mais rápido enquanto os estou observando e me assusto com minha mãe chegando para nos mandar dormir. Em breve as luzes da casa se apagam. Algumas horas se passam sem que eu me mova, até que ouço um pequeno ruído no corredor. Olho desesperada para meu irmão, que dorme profundamente, ainda com os fones nos ouvidos. Queria que ele acordasse, tento fazer barulho, mas ninguém me ouve. Me ocorre que meu irmão dormia propositadamente com os fones. Não queria testemunhar nada. Olho em vão para o quarto escuro e silencioso de minha mãe.
Observo minha cama, estou escondida sob as cobertas, numa tentativa infantil de não ser encontrada. Agora ele passa por mim e entra no nosso quarto escuro, sinto seu cheiro e solto um grito mudo.
Não consigo ficar ali. Não preciso ficar ali. Sei exatamente o que está se passando ali. Nessa e em todas as outras noites. Deixo o quarto e quero fugir dali, mas resisto. Passo pelo quarto de minha mãe. De costas para a porta, sentada na cama, ela encara a claridade que atravessa a janela. Percebo algum tremor no seu corpo tenso. Quero falar com ela, quero pedir-lhe explicações, perdoar-lhe, mas não consigo me mover até ela, não me parece valer a pena. Não agora.
Sem mais o que procurar ali, saio daquela casa para nunca retornar.